domingo, 22 de maio de 2016

Sofrer é mau


Continua-se feliz enquanto um dia mau é uma surpresa e, no dia seguinte, deixando de ser surpreendente e continuando mau, ainda se tem a esperança que a maldade seja interrompida.

Os AA e os NA dizem "um dia de cada vez". É a mesma coisa para quem deixa de fumar. Mas não é um dia. É uma hora de cada vez. E, às vezes, quando o vício ou a dor são enormes, é um segundo (ou menos) de cada vez.

Envelhecer é aprender. Com cada dia que passa acho mais difícil e mais inútil distinguir os castigos das culpas e os azares das justiças.

Sofrer é sofrer e dá cabo de quem sofre. Acordar com tanta dor na coluna que se desmaia é uma desgraça e uma dor e um facto. Aconteceu anteontem à mulher que amo.

A dor é dona das nossas vidas. Perseguir um prazer está para evitar um sofrimento como gostar de futebol está para o medo paranóico de ser assassinado por uma bola de futebol disparada pelo Cristiano Ronaldo.

Não sofrer a dor não só não é prazer nenhum (contra Schopenhauer) como é o mínimo e menos plausível dos requerimentos existenciais.

A felicidade é uma questão de ausência de tristezas, mais uma faísca maluca de sorte. A falta de dor, por muito que se disfarce, será sempre uma alegria escondida mas maravilhosa, à qual nunca demos valor.

Sofrer é mau porque se sobrepôe a tudo. Ocupa a vida toda e espezinha-a. Ocupa o tempo e o pensamento e torna-nos incapaz de ser, ter ou sentir outra coisa.

É maldade enaltecer o sofrimento, seja ele qual for. Ou de quem for.

By Miguel Esteves Cardoso


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Como é que se esquece alguém que se ama



Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.

É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.

Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansa.


By: Miguel Esteves Cardoso, in "ùltimo Volume"